Uma reflexão sobre os mini-SUVs e uma menor ênfase às capacidades de incursão off-road [Metralhadas do Kamikaze]


Com um grande apelo junto ao público devido à imagem de liberdade e aventura, além da sensação de poder ao enxergar o trânsito "de cima" tão apreciada sobretudo por mulheres, os mini-SUVs modernos estão cada vez mais orientados ao uso urbano e rodoviário em detrimento da capacidade de incursão fora-de-estrada.


Um bom exemplo desse fenômeno pode ser observado ao comparar a popularidade que modelos como os Suzuki Vitara e Grand Vitara que vieram entre a década de '90 e o início dos anos 2000 ainda tem entre adeptos do off-road recreacional, enquanto atuais líderes do segmento como o Ford Ecosport passaram a ser mais voltados à função de veículo familiar antes ocupada pelas station-wagons e posteriormente pela minivans.


Muitos tem atribuído ao layout de estrutura monobloco quase sempre compartilhado com algum automóvel compacto e à predominância do motor transversal e tração dianteira como as principais razões para essa vocação mais urbanóide, embora esse reducionismo não me pareça tão apurado.


Embora a configuração de chassi separado de carroceria, atualmente representada pelo Suzuki Jimny, tenha defensores ferrenhos, cabe recordar o Lada Niva que compartilhava o monobloco do Fiat 127 europeu, equivalente ao 147 brasileiro, e mesmo assim tinha bom desempenho em condições off-road severas.


Teve a posição do motor alterada de transversal para longitudinal, mas a principal razão dessa mudança foi para ampliar a intercambialidade de componentes com outros modelos já fabricados pela Lada naquele tempo, com motor longitudinal e tração traseira, e também acomodar um sistema de transmissão com caixa de transferência de dupla velocidade, recurso popularmente conhecido como "reduzida" e naturalmente mais volumoso.


Na prática, o motor transversal acaba não sendo um verdadeiro empecilho, tanto que o Renault Duster não faz feio com esse layout, embora use a mesma plataforma de compactos como o Nissan March e o Renault Sandero. Vale lembrar que a 1a marcha "crawler" usada na versão 4WD já é até considerada análoga a uma "reduzida" de acordo com os Requisitos Operacionais Básicos do Exército Brasileiro, e poderia servir até como pretexto para pleitear a homologação do modelo para ser oferecido com motor turbodiesel no mercado brasileiro.


Em países mais desenvolvidos e com malha viária decente, o apelo de modelos como o Mini Countryman pode estar mais vinculado à tração em condições de menor aderência como neve e gelo na pista, enquanto no nosso mercado terceiromundista o maior curso de suspensão até faça algum sentido diante de irregularidades no pavimento mesmo em ambiente urbano, além do porte avantajado em comparação com o Mini "normal" conferir um status até mais prestigioso.


A bem da verdade, mesmo considerando mini-SUVs que compartilham a estrutura com algum hatch de tração apenas dianteira, não seria pedir demais uma capacidade de incursão em terrenos hostis ao menos razoável, como no caso do rústico Citroën Méhari, que chegou a ser produzido no Uruguai pela Nordex (a mesma que atualmente monta os Kia K2500 e os Geely) entre '71 e '79. Baseado no Citroën 2CV, teve uma versão 4X4 comercializada na Europa em pequena quantidade, mas para a maior parte dos compradores a tração dianteira já era suficiente, favorecida pelo peso bastante contido e do sistema de suspensão independente nas 4 rodas. E hoje o mais próximo de um mini-SUV que a Citroën oferece é o C3 AirCross...


Para o público brasileiro, a primeira lembrança do que atualmente seria classificado como "crossover" por conciliar um layout mecânico mais próximo ao de um automóvel convencional com pretensões off-road são os Fuscas transformados em "Baja-Bug" e os Gurgel série Xavante (X10/X12/Tocantins).


Mesmo tendo atualmente o valor histórico um tanto negligenciado, os pequenos Gurgel chegaram a ser uma pedra no sapato da Ford, que em '83 se viu obrigada a descontinuar a produção do Jeep CJ-5 em função do volume de vendas ter atingido níveis abaixo das 300 unidades mensais que seriam o mínimo para garantir a rentabilidade dessa operação, causando algum temor até na Toyota antes de '79. Embora a tração somente traseira pudesse representar uma desvantagem considerável, um sistema conhecido como Selectraction e acionado por duas alavancas montadas ao lado do freio de estacionamento, permitia o bloqueio seletivo das rodas traseiras, para emular o efeito de um diferencial blocante e direcionar o torque à roda que estivesse em contato com a porção mais firme do piso, de modo a evitar "patinadas" e facilitar a transposição de obstáculos.


Atualmente, com a massificação do ABS, é possível aplicar a frenagem seletiva de forma automática e a um custo menor que o de um diferencial blocante como o ELD usado pela Fiat na linha Adventure Locker. A bem da verdade, chega a ser um tanto irônico que a Fiat venha dando mais ênfase a um aperfeiçoamento da capacidade de incursão desses modelos a ponto de serem muito populares até com serviços de assistência técnica para máquinas agrícolas na região de fronteira entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai, enquanto os SUVs propriamente ditos numa classe de tamanho próxima à da Palio Weekend e da Strada estejam cada vez menos aptos ao off-road...


De um modo geral, por mais que as opções estejam cada vez mais limitadas e desculpas sem um fundamento técnico honesto sejam apontadas para a "urbanização" dos SUVs compactos, ainda há um grande volume de mercado ávido por utilitários de pequeno porte com uma boa aptidão ao fora-de-estrada...


Sobre o autor

Daniel Girald, gaúcho de Porto Alegre, mais conhecido como Kamikaze, estudante de Engenharia Mecânica com alguma experiência anterior em mecânica automotiva e de motocicletas, contribuindo no Auto REALIDADE quinzenalmente (na primeira e na terceira sextas-feiras de cada mês) para abordar temas técnicos escolhidos mediante sugestões de leitores, ou aleatoriamente entre as novidades mais destacadas no mercado como na estréia da coluna. Defensor ferrenho da liberação do uso de motores a diesel em veículos de qualquer espécie.

Comentários

Anônimo disse…
Bom texto. Acho que essa procura pelos "SUVs urbanos" tem a ver com o apelo de "parecer" e não "ser". Não precisa transpor um lamaçal em uma trilha, mas "parecer" que faz isso. No Brasil, pelo menos, os jipeiros são pessoas com maior poder aquisitivo e que tem 2 ou 3 outros carros normais, isso faz com que a maioria que não pode ter um compacto, um sedan, uma perua e uma picape, compre um "jipinho urbano" que faça um pouco de tudo e "pareça" estar pronto pra aventura. Muitos seres humanos gostam de "parecer", de "status", de se mostrar para os outros, e esse segmento está atendendo a esse público. Mas claro, ainda existirão os jipes "de verdade" e ai todos ficam contentes.